Peniel Pacheco (*)
A justiça brasileira,
como ocorre praticamente com todas as instituições públicas, tem passado por
profundas mudanças e transformações nos últimos tempos. Algumas delas são
decorrentes das medidas administrativas, implantadas pelos próprios gestores do
setor, na tentativa de garantir respostas mais ágeis à crescente demanda
verificada nos fóruns e tribunais Brasil afora.
Sabe-se, por exemplo, que
o aumento da percepção, por parte dos brasileiros, a respeito dos direitos que
lhes assistem ampliou a tendência de judicialização em áreas como saúde,
relações de consumo, acidentes de trânsito e até conflitos familiares, entre
outros. Como atender adequadamente ao turbilhão de ações que abarrotam as mesas
dos magistrados em suas salas de julgamento?
Iniciativas como
implantação de Juizados Especiais, audiências de conciliação, justiça móvel,
ampliação do número de varas especializadas, incentivo à busca pelos tribunais
de arbitragem são algumas das soluções encontradas para minimizar tais
situações. Há mudanças, no entanto, que não se deram por ações administrativas planejadas
pelos gestores.
A mais perceptível é a
que se pode denominar de espetacularização dos julgamentos. Outrora, as sessões
eram tidas como impenetráveis. Jamais um simples mortal teria acesso fácil à
sala de julgamento, a não ser na condição de demandante, de testemunha ou de
operador do direito.
Hoje a realidade é bem
diferente. Graças aos recursos dos modernos sistemas de comunicação, como a
televisão fechada, as sessões do STF são transmitidas ao vivo para todo o país.
Qualquer pessoa pode acompanhar, em tempo real, os discursos e votos de Suas
Excelências, os Senhores Ministros.
Assim, alguns julgamentos
se tornaram famosos, atingindo audiência jamais alcançada pelas emissoras abertas.
Torcidas organizadas se formaram para acompanhar cada lance, como se fosse um
espetáculo esportivo.
Em alguns casos, cada
voto era comemorado como se fosse um gol. Como no futebol, cada mexida no
placar provocava euforia em alguns e frustração em outros. Os “dribles” e as
“caneladas” trocados entre os personagens do espetáculo eram aplaudidos como um
desconcertante “olé” no adversário. Até as cores das camisas ideológicas
passaram a ter um simbolismo semelhante a um Fla X Flu, ou a um GRENAL.
Foi nesse cenário de
ferrenha disputa, com lances surpreendentes de ofensas e provocações, que os
bastidores da mais elevada instância da justiça brasileira foram, pouco a
pouco, expostos aos olhares atentos e, por vezes, atônitos de doutos e leigos. Descobrimos,
por exemplo, que os ministros são gente como a gente. Que, apesar das suntuosas
capas pretas, cometem derrapadas jurídicas e verbais tanto quanto outros
profissionais, por mais talentosos que sejam, em suas respectivas áreas de
atuação.
Descobrimos, também, que
o direito é bastante elástico. Há margem para múltiplas interpretações do texto
constitucional ao sabor de cada corrente de pensamento ou, até mesmo, de acordo
com o quilate do paciente da ação. Casos aparentemente idênticos são, muitas
vezes, tratados de forma distinta como se houvesse mais de uma maneira de se
fazer justiça.
Assistimos também alguns
lances hilários, com o uso de palavras e jargões muito comuns nos estádios de
futebol, mas pouco recomendáveis para o ambiente sisudo de uma Corte Suprema. Claro que se deve enfatizar que isto não é
“privilégio” dos ministros do STF. Tribunais de Justiça de todo o país
protagonizaram cenas grotescas, como o uso de um carro de alto luxo apreendido
pela justiça e “inocentemente” utilizado por um magistrado que não resistiu à
tentação de desfilar pelas ruas da cidade ostentando o caríssimo brinquedo.
Mas o lance mais
inesperado ocorreu agora a pouco, qual seja, o vazamento de conversas
reservadas entre promotores e o juiz da lava-jato que trouxe a público algo até
então desconhecido da maioria das pessoas – a verdadeira dimensão dos chamados
“embargos auriculares”. Ou seja, ocasiões em que o juiz recebe pessoalmente ou via
sistemas de comunicação interligados na web (como foi o caso da lava-jato)
advogados e promotores para conversarem “em tese” sobre os andamentos do
julgamento.
O vazamento das conversas
foi o estopim para trazer de volta às arquibancadas as duas torcidas que
historicamente se mantinham entrincheiradas em seus respectivos redutos. “Pode
isso, Arnaldo?” – indagaram alguns. “Foi penalidade máxima!” – exclamaram
outros. “A decisão precisa ser revista!” – insistiram os que estavam perdendo o
jogo. “Lance absolutamente normal!” – rebateram os que já cantavam vitória!
Como esclarecer as
dúvidas? O que fazer para estabelecer o veredito final? Se fosse no futebol,
bastaria dizer: “chamem o VAR. Afinal, não está tudo registrado?”. É por meio
da revisão dos lances mais polêmicos, com uso de sofisticados equipamentos de captação
e ampliação de imagens, que o árbitro tem agora a chance de rever suas decisões,
evitando, dessa forma, que se cometam injustiça que interfira no resultado
final da partida.
Já provamos do gosto
amargo do uso do VAR na partida em que o Brasil empatou com o time (não tão
maduro ainda) da Venezuela na Copa América. Foi ruim para nós brasileiros, pois
queríamos insistentemente a vitória, mas temos de reconhecer que, em alguns
casos, o dissabor é o preço que temos de pagar para que a justiça seja feita.
Penso que está na hora de
esclarecer o que poderia ser comparado ao VAR no caso da Lava-jato. O argumento
é simples: há fortes indícios de que as conversas entre Moro e os promotores
realmente aconteceram, pois até o presente momento ninguém negou tal fato. A
grande questão então é: o que foi tratado entre os promotores e Sérgio Moro foi
imoral, ilegal ou antiético? Ele sustenta que não. Seus partidários afirmam
peremptoriamente que conversas com este matiz são absolutamente normais entre
magistrados e acusação.
Usando a alegoria do
futebol, vale dizer que quanto mais clara é a infração, menos esforços precisam
ser dispendidos para balizar a decisão do árbitro. Na Justiça não é diferente.
Quanto mais óbvia for a culpabilidade do réu, menos necessidade haverá do uso
de expedientes heterodoxos para encontrar as razões que justifiquem a aplicação
das sanções legais.
Tudo o que foge desta premissa
só serve para aumentar as suspeitas de que as evidências obtidas careceriam de
reforços extras. Caso contrário, bastaria utilizar os elementos comprobatórios contidos
no processo para embasar a decisão que, segundo as regras e boas práticas do
melhor Direito, deve necessariamente ser aplicada de forma serena e
absolutamente imparcial.
Diante dessa constatação,
e voltando aos diálogos vazados pela mídia, convém indagar: se é fato que tais articulações
são absolutamente normais, porque tamanha inquietação com a divulgação das conversas?
No lugar de criminalizar os vazamentos, não seria mais sensato divulgar seus
conteúdos, atribuindo-lhes o exato e devido contexto?
Moro alega que não dispõe
mais dos registros das conversas. Entretanto, isto é muito simples de resolver:
afinal, para que servem os peritos da Polícia Federal? Basta encaminhar os
aparelhos envolvidos nas conversas para se resgatar os autênticos conteúdos. Isto
na hipótese de se colocar em dúvida as conversas que estão sendo divulgadas
pela imprensa. Vale lembrar que esse é um procedimento usual da Justiça quando determina
ações de busca e apreensão para recolher provas nos aparelhos e equipamentos
dos suspeitos, submetendo-os à perícia técnica visando o resgate das
informações neles contidas.
Se, por outro lado, o teor
das conversas vazadas é reconhecido como verdadeiro, e tais níveis de
abordagens entre julgador e acusador são absolutamente normais, então não há o
que temer: basta apresentar os fundamentos legais para justificar tais
procedimentos e submetê-los a quem de direito para que revejam as cenas,
analisem as intenções, chamem os agentes envolvidos, colham as provas,
tomem-lhes os depoimentos e decidam se houve ou não quebra de decoro, dolo ou
abuso de autoridade na condução do processo legal.
Mas, infelizmente, o que a
experiência nos mostra de verdade é que o hipotético VAR jamais será acionado,
principalmente se o juiz do processo insistir em dizer que não vê motivo para
reavaliar sua conduta, porquanto ser ele o dono do apito, ou melhor, da caneta.
Como normalmente ocorre no Brasil, corre-se o risco de ficar o dito pelo não dito. Já assistimos este tipo de lance quando o árbitro foi apenas advertido pela comissão de arbitragem. É bem provável que Moro apenas receba um suave puxão de orelhas de algum ministro um pouco mais sensato e que seja blindado para não abalar, ainda mais, a já combalida reputação do Judiciário brasileiro, impedindo, dessa forma, que se esclareça, de uma vez por todas, se o que ocorreu nos bastidores da Lava-Jato fere de morte o rito processual, tornando-o eivado de vício formal.
Parece que a tão almejada transparência no Judiciário brasileiro, por enquanto, vai ficar por conta de Suas Excelências os ministros do Supremo, ainda que simplesmente limitada às já costumeiras cenas protagonizadas na arena das disputas de ego visando a aplicação do direito constitucional. Ali as sessões da tarde e da noite continuarão a revelar os melhores e os piores momentos da Suprema Corte do país do futebol.
(*) Ex-deputado distrital e Mestre em Ciências da Educação