Quase todos já escutaram a música “Cálice”, mas poucos conhecem sua verdadeira história. Escrita por Chico Buarque e Gilberto Gil em 1973, a canção foi censurada pelos militares e acabou sendo lançada apenas em 1978, nas vozes de Chico e de Milton Nascimento. Por meio de duplos sentidos e metáforas, a letra, de modo inteligente, aludia à repressão e à violência do governo e se tornou, por isso, um dos mais famosos hinos de resistência ao regime militar.
A censura tinha sido permitida anos antes pelo Ato Institucional nº 5, emitido pelo então presidente Artur da Costa e Silva em 13 de dezembro de 1968. O “AI-5”, como acabou ficando conhecido, foi o mais duro dos dezessete grandes decretos emitidos durante aquele regime. Por meio dele, as garantias constitucionais foram suspensas, parlamentares contrários ao governo perderam seus mandatos e foram ordenadas intervenções em municípios e em estados.
Em geral, conhecer a história previne que nós, meros mortais, repitamos os erros do passado. Entretanto, para os deuses do Olimpo judiciário, que se julgam incapazes de errar, revisitar a história parece não ter muita utilidade, visto que, para eles, os conceitos têm uma definição bem particular: “certo” é tudo aquilo que lhes dá na telha fazer; “errado”, aquilo que os incomoda. Por essa lógica especial, errados são sempre os outros. Sempre. Mesmo que, para impor isso, seja necessário rasgar a Constituição e, consequentemente, profanar a sua própria razão de existir.
E, assim, por meio da instalação de um inquérito eivado de vícios, absolutamente inconstitucional e ilegal na visão da Procuradoria-Geral da República, que já determinou seu arquivamento [1], busca-se justificar o retorno da execução de medidas impensáveis em um regime democrático, a exemplo do temporário atentado à liberdade de imprensa [2], da determinação de bloqueio de contas em redes sociais e da autorização de mandados de busca e apreensão, inclusive genéricos, como claro instrumento para tentar calar críticas ao STF e a alguns dos seus ministros.
Será que as oniscientes divindades realmente não percebem que, ao macularem a dignidade dos cargos que ocupam por meio de comportamentos e decisões, para dizer o mínimo, atabalhoadas, estão fazendo por merecer essas inúmeras manifestações de desapreço? Que, quando apenas 24% das pessoas confiam no Supremo [4], ao passo que a reprovação a determinados ministros atinge taxas próximas a 70% [5], seria preciso, para calar os críticos, desligar a internet no Brasil?
Enfim, rezo baixinho aqui para não ser, também eu, contemplado com uma visita inquisitorial da Polícia Federal (a qual, pensando bem, talvez até contribuísse para me dar ainda mais voz). Porque, mesmo que viesse a ser impedido de escrever, eu certamente não deixaria de cantar, a plenos pulmões, ao amigo do amigo do pai: “Afasta de mim esse cálice”.
Por Regis Machado – Auditor do Tribunal de Contas da União (TCU)